sábado, 8 de fevereiro de 2014

As faixas amarelas



Passei por cima de mim mesma várias vezes por você. É que você chegou num momento que eu já estava cansada, muito cansada. Cansada de perder pessoas importantes para mim por orgulho. Mas, ironias da vida, depois de ter feito tanta gente sofrer com isso, não é que eu fui me envolver com uma pessoa exatamente assim, extremamente desconfiada e orgulhosa? Eu achei que eu ia ceder um pouquinho e que você, vencido, viria com o resto. Eu andaria metade da estrada e a gente estacionaria os carros, um de cada lado dela, atravessaria e se encontraria exatamente no meio, em cima daquelas duas faixas amarelas. Elas alertariam para a contra-mão e diriam que não era permitido ultrapassar. E eu imaginava que você não ia dar a mínima para elas, exatamente como eu queria. Nos beijaríamos ali mesmo, em cima das malditas. Pra ontem, pra anteontem, para antes de anteontem. Com pressa. Coisas da esfomeada, a tal da urgência de amar.

Mas, ás vezes, acontece dessa urgência ser unilateral. O outro até tem algum sentimento por nós, mas não podemos esquecer que a gente toca o outro cada um à sua maneira; e, da mesma forma, a gente sente o outro cada um à sua maneira. Ás vezes, a química é evidente, mas pode ser que ela não baste pra você ou pra mim. Pode ser que eu queira receber uma ligação sua no meio da semana com você perguntando como foi o meu dia, deitado na cama, só com os pés para fora, ainda calçados, olhando pro teto, sorrindo e tirando o sapato esquerdo com o pé direito e vice-e-versa. Pode ser também que eu queira escutar exatamente o que você fez no trabalho hoje e saber de todas as picuinhas que te estressam - e, quem sabe, até te fazer uma massagem depois disso pra você relaxar? Pode ser ainda que eu queira cuidar de você quando você tiver febre, fazer uma comidinha caseira ou pedir alguma coisa pelo telefone; fazer cafuné no seu cabelo ou te distrair te contando uma história engraçada; pegar um filme na locadora (sim, ainda adoro pegar filmes em locadoras) ou me render ao seu apreço pela tecnologia e baixar algum que acabou de entrar em cartaz e você tava louco pra ver - prometo que eu faço pipoca e tudo! Numa terça-feira que a gente não trabalhasse - afinal, somos os dois freelancers -, a gente iria passar a tarde inteira na praia ou então só tomaríamos um sorvete na esquina. Num sábado, você sairia com os seus amigos e ficaria de ressaca o domingo inteiro, mas, de repente, no fim do dia poderíamos pegar um cinema, o que você acha? Você me contaria o que a bebedeira rendeu pra cada um de vocês na noite anterior. A gente riria das histórias se repetindo. Na quinta-feira, eu iria com alguns amigos pro Baixo Gávea, pra Lapa ou pra São Salvador e você chegaria lá, me daria um beijo molhado e passaria a noite sentado em algum pé sujo (ou até mesmo no meio-fio) conversando com a gente sobre tudo e qualquer coisa. Ou não, ou ficaríamos 1, 2 semanas sem nos ver e depois mataríamos a saudade com uma noite daquelas. Ou com Mc Donald's às 3h da manhã. Ou melhor, com Fornalha. Tanto faz, o que importa mesmo é a companhia. Você poderia tocar violão pra mim qualquer dia desses e eu poderia cantar com a minha voz desafinada e com meus cabelos despenteados. A gente poderia também enrolar 4h pra sair da cama, fazer planos de viagens e de fugas por aí, colocar a pizza congelada no forno ou ir prum bar ver a luta que você tanto queria ver - apesar de eu não dar a mínima pra lutas. Ou, ou, ou.... são tantas as possibilidades. É, pode ser que eu queira. Pode ser que.

A gente tem a mania de achar que a vida vai acontecendo, como se fôssemos exclusivamente sujeitos passivos das nossas próprias, quando na verdade podemos ser protagonistas e até roteiristas delas. Esquecemos de como as relações são frágeis e de como podemos deixar alguém passar por orgulho, desatenção, etc e tal e, com essa pessoa, um leque enorme de potenciais momentos bons e ruins que poderiam fazer toda a diferença pra gente. E, numa dessas, encontrar um, dois, três, vários companheiros para a vida; não só amores românticos, mas também amigos, colegas e familiares há muito afastados - pessoas essas que nos mostram várias facetas delas e de nós mesmos; que estão lá para nos irritarem vez ou outra, mas para aquele ombro e palavra amiga quando precisarmos também, que nos amam por tudo que a gente deixou elas verem da gente. Parceiros. E, a partir de então, a gente vai, no nosso tempo, jogando a desconfiança prum lado, o orgulho pro outro e vamos até o meio da estrada, em cima das faixas que nos advertem para a contra-mão e nos condenam dizendo que não podemos ultrapassar de forma alguma. Decidimos não dar a mínima para elas. Quando tomamos essa decisão, pode ser que o outro já esteja ali na faixa nos esperando. Ou pode ser que ele não tenha chegado ainda, tenha pego um trânsito filho da puta pelo caminho. Ou ainda, pode ser que ele tenha chegado do outro lado da estrada, tenha estacionado o carro, mas não tenha tido vontade ou coragem de sair dele até então. Ou, pior, pode ser que o outro já tenha feito todo esse trajeto, já tenha deixado o carro, abandonado a desconfiança e o orgulho, atravessado metade da estrada e ficado nos esperando em cima da faixa. E pode ser que ele tenha se cansado de passar tanto tempo ali, nu, sozinho. Pode ser que tenha voltado para o carro, soltado o freio de mão, acelerado e retornado para o seu ponto de partida ou prosseguido para o destino seguinte. Tantos "pode ser que", tantas variáveis... nunca se sabe, on ne sait rien. Por via das dúvidas, tentemos não perdê-lo. Quando se tratar de alguém especial pra chamar de parceiro, que a gente não dê ouvidos às faixas amarelas. Elas já estão ali, juntas, em dupla, análogas e proporcionais em meio à toda aquela contra-mão em volta delas e à impossibilidade de ultrapassagem, assim é fácil mandar e desmandar, não é mesmo? Então, que essas ordens se restrinjam ao trânsito e nada mais, pois em matéria de amor elas não estão com nada. 

Um comentário:

  1. Yeah more entries in your blog! Two in one day (and I am leaving a comment a day late, bad me!!). I really liked this. It is very philosophical. I have always told you that you have a gift to make your personal universal, here you go beyond this, offering from your own experience, you own philosophical views, in a sweet way, as always.
    Your story/poem (to me it is a bit of both) is wonderful, but also a bit wistful, a bit sad... but also wonderful and amazing
    Keep writing my friend (and write a new poem soon) :-)

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